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Bilhões e Over powers
Crônicas
Publicado em 24/07/2014

Há um ensaio bastante interessante de Carl Sagan, “Bilhões e bilhões”, publicado em um livro de mesmo título, em que o astrofísico apresenta a questão da quantificação e de como valores “antigos” são razoavelmente insuficientes quando comparados às necessidades “modernas”. Por exemplo, lá nos tempos de homens das cavernas, tínhamos “dia” e “noite” e era isso, nada de semanas ou meses. Cada dia era “eterno”. Com a ascensão da agricultura e o ser humano se tornando sedentário, conhecer as marcações das estações de calor, frio, chuva e seca tornou-se algo essencial. Claro, o tempo sempre é o tempo, ele não varia “para mais” ou “para menos” (bom, até varia, mas isso é coisa do Mr. Stephen Hawkins e merece um texto próprio), nós criamos as categorias que necessitamos para estabelecer um ponto cronológico relevante.

Com o passar das eras, chegamos em estações, meses, semanas, dias, horas, segundos, centésimos, milésimos... Para que diabos um cavernícola marcaria centésimos de segundo? Para disputar uma corrida com o Fred Flintstone e os Irmãos Rocha, numa versão paleolítica de “Velozes e Furiosos”? Pois é... Nesse sentido, Carl Sagan, explicando sobre os primórdios de seu programa “Cosmos”, fala sobre o impacto da expressão quantificadora “bilhões” nos anos 1980.  Sagan destacava a existência de bilhões de galáxias, de uma população mundial de bilhões de pessoas, de bilhões de trilhões de estrelas e de como havia a necessidade de resumir esses números assombrosos por meio de sistemas mais cômodos, como a notação científica. Imaginem só escrever a massa da Terra, seis octilhões de gramas, em numeral extenso? Talvez 6x1027 seja realmente mais simples, não? Esforços para categorizar e quantificar são inerentes ao ser humano: vemos, percebemos, tentamos explicar e, com alguma técnica, medir e quantificar. Parece que passamos não mais a medir apenas o necessário, mas assumimos uma postura de conferir a especificidade das micro ou mega quantidades. Não nos contentamos mais em ver o cosmo, mas sim em perceber e conjecturar sobre o Microcosmo ou o Macrocosmo e suas possibilidades. Sob esse aspecto, os quadrinhos são emblemáticos: o herói se tornou o “super” herói, o vilão se tornou o “arqui”-vilão e as histórias viraram sagas, longas e intrincadas, com finais nem sempre satisfatórios e “catárticos”. Vejamos o bom e velho Superman: lá nos anos 1940, o Azulão enfrentava bandidos, gangsters e nazistas. 

Nos anos 1980, com a reformulação de sua origem, o Super carrega um boeing 747 nas costas sem esforço. Já em 2012/2013, com a reinvenção do personagem pela editora DC em seus “New 52”, ele consegue segurar o peso da Terra nas costas por dias. Sim, eu escrevi com “s”, no plural, DIAS. Quem sabe, logo, ele consiga segurar o cosmo todo por algumas horas... Esse tipo de feito, antes de causar assombro, parece causar mais a sensação de enfastio, de um grande e monótono “putz...”. Na verdade, quanto mais poderoso o personagem, maior o problema para o bom roteirista. Veja, meu caro leitor, que salvo raras exceções, nós gostamos de histórias em que o personagem precisa se esforçar, tornar-se alguém melhor para superar o desafio proposto. E, me pergunto estarrecido, o que diabos o sujeito que pode segurar o peso da Terra por dias ainda precisa superar? O aumento na quantificação da força do Superman foi um “tiro no pé” da editora DC. E não só do Azulão, vejam bem, mas os próprios Batman e Flash caíram nessa furada. O Batman dos quadrinhos está tão sagaz, tão “estratégico” e analítico, que está chegando no ponto de prender os pais do sujeito que vai nascer e se tornar gangster. Claro, estou exagerando, mas reparem bem nos quadrinhos do Batman atual e naqueles do início da década de 80 que a diferença estará bem marcada: antes tínhamos um detetive investigando casos em que os culpados eram uns maníacos fugitivos do Arkhan; hoje, parece que a mitologia do Batman está tão intrincada que é difícil ler uma história sem ter um bom conhecimento prévio do macro-passado do personagem. Quanto ao Flash, bom, ele está se movendo quase na velocidade da luz, ou seja, os malditos 300.000 Km/s que lhe permitiriam dar quase dez voltas ao redor do planeta em UM segundo. É exagero, “over demais” como diz um amigo. Não é à toa que, cada vez em número maior, apareçam histórias em que os heróis enfrentam os próprios heróis, como em “Injustice: gods among us”, já que os vilões, pobres coitados e eternos buchas (exceto o Dr. Destino), não costumam receber “up” em seus poderes. E, convenhamos, o Superman fascistóide de “Injustice” é algo meio assustador por, justamente, espelhar algumas mentalidades muito em voga em nossos dias. Por outro lado, essa onda de “over powers” acaba impondo um desafio aos roteiristas e editores, suscitando que os pensantes, de fato, parem e inovem os enredos. É algo raro, mas acontece. “As quatro estações”, do Superman, é um exemplo interessante: ali se discute a grande questão de que todos os seres vivos, sejam “super” ou não, tem uma jornada que se inicia no nascimento e culmina na morte. E então nos perguntamos: de que vale ser super, se a morte é algo inexorável? A diferença está justamente na forma em como se encara tal perspectiva, em como entendemos e “digerimos” esse destino final, uma espécie de contrapeso a tudo que fizemos ao longo da existência. Outra saída ao over power é a mutabilidade deste, como no caso da série animada Ben 10. A animação foi produzida pelo estúdio Man of Action, que possui roteiristas com experiência em quadrinhos e, verdade seja dita, teve acertos e erros bem similares aos que vemos nas séries de comics. Entre os aliens que permeiam o repertório gênico do protagonista, encontramos desde espécies pífias, como um tipo de macaco-aranha, até seres capazes de interferirem no tempo/espaço, o “over do over”. Pois é, mas a solução adotada foi até bem simples: o garoto não tem pleno controle do aparelho transmutador e, na maioria das vezes, ele assume formas diferentes das que almejava inicialmente. Talvez a premissa da série seja uma releitura da arca de Noé em nível cósmico (macro) e genético (micro), algo que casa com as ideias de grandeza que falávamos no início do texto. Talvez seja algo meio nostálgico de minha parte, mas acho muito mais interessantes as histórias antigas, com sua “inocência” e aspectos pueris, que algumas coisas atuais, com super-heróis mega poderosos e incapazes de cativar o leitor por mais de seis edições. Bilhões de poderes, realmente, não parecem capazes de sustentar bilhões de possibilidades para um simples enredo.

 

 

 

Dangelo Müller 

Ms. Letras e Cultura Regional

 

 

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