Ética e surf espacial
Crônicas
Publicado em 02/07/2013
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Há alguns dias estive relendo uns apanhados de psicologia, livros perdidos entre o esquecimento e a sordidez antediluviana de meus armários. Fiquei atônito por alguns momentos: “Mas que diabos um livro de psicologia do Zimerman faz aqui?” pensei. A resposta veio num flash, em visão panorâmica e em preto e branco: “Ah, malditas bagatelas da feira do livro!”. Para meu espanto ainda maior, descobri que eu, humilde burguês, havia lido e anotado nas margens da obra. Na época, o que havia me chamado a atenção era o conceito de grupo, a diferença com agrupamento e as insólitas tipificações da liderança. Lá pelos idos do capítulo 5, o Zimerman explicava que o ser humano é uma racinha muito da gregária, que esse terrível bípede implume existe em função de seus inter-relacionamentos grupais. É aquela história de “um conjunto de pessoas constitui um grupo; um conjunto de grupos constitui uma comunidade e um conjunto de comunidades constitui a sociedade”, etc, etc e etc... Além de ser gregário, o ser humano tem uma forte relação com a figura do líder. Ah, o líder, como é bom amá-lo ou odiá-lo... Bom, o Freud achava que o verdadeiro líder é o cara que consegue introjetar seus modos e visões nas pessoas do grupo, ou seja, lá pelas tantas, queremos e agimos para ser como o fulano. Já o Bion andava pela faixa contrária: achava que o líder é um produto do grupo, alguém que responde às necessidades das pessoas do grupo. Bom, essa é uma discussão que vai além destas parcas linhas, chegando mesmo ao arraial nada junino da psicologia social, coisa assaz tensa para tal escrito...
Enquanto estava pasmo com a qualidade, péssima por sinal, de meus maus garranchos rodapeísticos, ouvia o vocal inquisitivo do Roger Daltrey: “Who are you?! Who-Who-Who-Who” e, então, percebi algo muito interessante, sobre como a relação de identidade e liderança estão expostas na graphicnovel “Parábola”, do Surfista Prateado, escrita pelo Stan Lee e com arte do Moebius.O enredo é algo bem ao estilo ficção científica: num futuro (não tão distante), uma gigantesca espaçonave desce dos céus e pousa no coração de uma grande cidade. Ok, meio clichê, mas espere um pouco: de dentro do engenho espacial, eis que surge Galactus, o devorador de planetas! Hah! E agora, Miguelito: um deus espacial pousou na Terra e pretende sugar sua energia, extinguindo toda vida no decorrer do processo! Só que não. Galactus não começa a instalar o típico maquinário Husqvarna, Ford ou Votorantim necessário para devorar o planeta. Ele simplesmente fica lá parado e aceita ser idolatrado, como um deus.
E aí, meus caros, o Galactus mostra por que é um cara velho como o universo: se consideram ele um deus, ele usa da prerrogativa e “dita” um novo mandamento, ou seja, “Não existe mais pecado. Prazer é tudo.” Bom, imaginem a desgraça que se sucede... De saques a homicídios, cai a máscara civilizada do ser humano. Para piorar ainda mais, surge um falso sacerdote, o pastor Candel, que conduz as massas numa adoração fanática ao Galactus. Se acabasse por aí, já seria uma obra memorável, mas Stan Lee introduz a figura do herói na trama: o Surfista Prateado. Norrin Radd, o Surfista, está esquecido, vivendo como um mendigo num beco sujo, já meio descrente da humanidade e introspectivo. Quando é reconhecido por Elyna, a irmã do pastor facínora, o cavaleiro do céu sente uma ponta de esperança e resolve trocar uma ideia com o sinhozinho Galactus. O Surfista interpela o gigante e o lembra sobre um antigo juramento, no qual Galactus aceitava que jamais iria destruir a Terra.
O deus espacial responde que, na verdade, quem está destruindo a Terra são os humanos, e não ele. Touchè. Deus espacial e advogado, pelo que se percebe...Desesperado, o Surfista tenta abrir os olhos dos seguidores de Galactus, mas não dá muito certo. Assim, ele parte para o confronto com o próprio gigante. A batalha é épica no traço do Moebius: prédios destruídos, raios cósmicos, a expressão rígida do gigante! Por fim, quando o Surfista é abatido, surge um helicóptero que tenta ajudá-lo. Sim, meus caros, ainda há esperança para a humanidade! Pilotando a aeronave mequetrefe, está Elyna, baleada e quase inconsciente, mas firme no propósito de desbancar o falso deus. Mas, ó drama dos dramas, eis que o dito avião-de-rosca cai, dirigindo-se à destruição. Num átimo heroico, o Surfista emparelha com a aeronave e está quase salvando a menina, quando Galactus o alveja. O helicóptero e o Surfista caem. Tomado pela fúria da justiça (hehehehe), Norrin Radd alça voo e ataca Galactus com todo o seu poder. Mas não dá nada, afinal, o cara é um deus gigante espacial que devora planetas... Mas aí as coisas ficam interessantes, os seres humanos, ao redor do planeta, começam a perceber que o seu pretenso deus é uma fraude, que é um ser um tanto quanto maldoso.
Jatos começam a atacar o devorador de planetas e multidões revoltosas protestam contra o aumento da passagem, opa, contra a vilania do monstro espacial. Bom, Galactus fica tristonho (afinal seu plano de deixar a humanidade se autodestruir foi por água abaixo) e abandona o planeta.
O Surfista é reconhecido como herói e, numa assembleia da ONU, é aclamado para ser o rei da Terra, o mandachuva supremo, o capitão do mato da macacada toda. Claro que o cara se revolta: ele quase foi esmagado e desintegrado por um deus cósmico para dar à humanidade o direito de ser livre e os foliões vem com uma proposta dessa? Três letras: bah... Ele alça voo e deixa a ONU, se refugiando nos limites da atmosfera e do espaço.
Essa “Parábola” é algo que dá o que pensar: a humanidade vive num estado de constante agrupamento, ou seja, estamos num espaço coletivo, mas não necessariamente num mesmo ideário e, quando uma força cósmica surge, assumindo o postulado de um líder magno que isenta todos de qualquer responsabilidade, os homens apenas cedem aos seus desejos mais secretos. É o bonde da safadeza nossa de cada dia, elevada na enésima potência, em que Galactus é o líder que todos desejamos. A contrapartida deste fenômeno manifesta-se quando o Surfista Prateado ganha relevância: ele é o herói da resistência moral e ética, e que acaba virando o líder que precisamos. As passagens de “Parábola” são jornadas de diálogo entre o individual e o coletivo, entre a percepção do “Eu” e minhas vontades, e o jogo com o “Nós” e nossas possibilidades. Stan Lee e Moebius teceram uma narrativa vigorosa, que consegue atravessar uma questão muito densa, socialmente falando. Quando Galactus ascende, a criticidade do ser humano é a primeira vítima, deixando o mundo num vácuo ético, possibilitando a proliferação de falsos sacerdotes, falsos messias e massas fanáticas.
O mundo hedonista do falso deus espacial é muito interessante, uma Terra que anda livre de culpa e consciência, mas que, infelizmente, se dirige para um abismo suicida. Falta-nos a consciência que os libertários como Kropotkin e Tolstoi tanto ansiavam ver nas multidões, a percepção de que nós não precisamos de líderes, que somos nossos próprios dirigentes quando embasados na ética.Faça um exercício de imaginação, meu caro leitor, e substitua o famigerado Galactus por uma multinacional de sua escolha: somos líderes, seguidores ou mesmo fanáticos? Somos ovelhas de um rebanho multinacional? É incrível como a Parábola do Surfista Prateado continua assustadoramente atual, e a voz de Roger Daltrey segue no alerta:
I really wanna know
I really wanna know
Come on,
tell me who are you
You!
Dangelo Müller
Ms. Letras e Cultura Regional