Para não deixar ainda mais vago um tema que, por si só, já é denso como uma nuvem, vamos usar um herói como exemplo: proponho o Superman, então. O Super foi criado por dois garotos, lá nos idos dos anos 30, como uma espécie de superser que defendia a justiça, os fracos e os oprimidos, enfrentando gângsters e mesmo bandidinhos mequetrefes. Conste que, naquela época, o Super não voava, mas dava uns saltos que deixariam o Kamen Rider com inveja... Com o passar do tempo, os poderes do personagem “evoluíram” e ele passou a voar e, bom, no filme de 78, ele tem mais poderes que Shuster e Siegel jamais imaginaram em seu personagem de 1938. Não só os poderes, mas a própria origem de Kal El foi inventada e reinventada algumas vezes, sempre girando em torno de ele ser o sobrevivente de um planeta extinto e ter a vivência infantil e juvenil de um americano do Kansas. Quando, retomando a parte 1 do texto, pensamos no Superman como um apanhado de elementos míticos, arquetípicos e fantásticos, ou seja, o aspecto objetivo, percebemos que ele se correlaciona aos deuses solares, como Zeus e Apolo, ou, num sentido simbólico, ao Cristo. Superman é o personagem “filho das estrelas”, suas capacidades envolvem voo e disparo de raios, mas, ainda assim, ele não impõe sua vontade ao ser humano comum, se prestando mais a ser, simbolicamente, um exemplo de ética. Claro, podemos buscar ainda outros substratos, como o personagem ser, em si, uma espécie de trindade (Superman, Kal El e Clark Kent), ou ainda as cores tão emblemáticas (homem branco, com roupa azul e capa vermelha), ou seja, percebe-se que o Super não é uma mera “jogada sortuda” da mídia, ele é um personagem construído e vinculado aos valores de uma cultura ocidental detentora de vastos capitais. E esses são alguns dos aspectos objetivos desse herói, sua visão esquematizada. Quando analisamos o “quadrinho nosso de cada dia”, percebemos, sim, o aspecto objetivo, mas, talvez inconscientemente, o que se ressalta parece ser o aspecto subjetivo, ou seja, a visão do leitor, enquanto indivíduo, que faz o personagem parecer “mais humano”. Esse processo de humanização do herói – o qual, sem dúvidas, engloba mais aspectos divinos que humanos – parece centrar-se no elemento da identificação leitor/personagem. Mas, meus caros, como se dá isso? Até onde sei, nos identificamos com aspectos comuns e similares que acabam por aproximar o Eu do Outro... E, novamente, até onde sei, nós ainda não voamos e disparamos raios ópticos... Como se dá isso, então?
Minha hipótese, e perdões pelo tom acadêmico desta terrível frase, é a de que é tudo uma questão de gênero textual. Aristóteles (malditos gregos!) criou uma divisão válida até hoje no campo da literatura, cujo cerne é a existência de três grandes gêneros de textos: o épico, o lírico e o dramático. O gênero épico é aquele da Odisseia, que citamos no início do texto 1, em que se caracteriza uma cultura objetiva, de defesa dos interesses do Estado, das grandes batalhas e dos feitos do passado glorioso; o gênero lírico expõe a visão subjetiva, os sentimentos e sensações do autor e dos personagens, ou seja, larga o “nós”do épico e fica mais centrado no “eu”; já o gênero dramático, na visão do tio Aristóteles, era vinculado à representação teatral e nos modos de se transmitir a mensagem.
Bom, com isso em mente, temos a primeira sacada para repensar o Homem de Aço: os escritores, ao trabalharem o personagem, desenvolvem argumentos que mesclam atos heroicos (gen. Épico) aos sentimentos do personagem (gen. Lírico), desenvolvidos numa “plataforma”, mise-en-scène oubackground que só funciona graças ao gênero dramático.
Vejamos: no final do filme de 1978, o Super quebra algumas leis da física, da lógica e do bom senso ao voar ao redor da Terra em supervelocidade, fazendo o tempo “andar de trás para frente”. Diabos, ele faz a Terra dançar o Moonwalk do finado Michael Jackson... Essa façanha é, sem dúvida, épica, mas, olha a pegadinha, é motivada por sentimentos! Ele faz isso para salvar Lois Lane, e seu adorável carrinho modelo 77, de um soterramento ignominioso! Outro exemplo da profundidade psicológica do Homem de Aço pode ser visto nos quadrinhos quando, numa das melhores histórias do Super, “For the Man Who Has Everything” (Para o homem que tem tudo), de 1985, de Alan Moore e Dave Gibbons, o Super ganha presentes de aniversário de seus amigos, mas, em seu coraçãozinho kriptoniano, seu desejo secreto era ser um trabalhador comum, casado e com filhos, em Kripton... Fazer churrasco no domingo, levar o Kripto para passear, sei lá, hehehehe. Além da boa dosagem entre lírico, épico e dramático, há ainda outro fator muito importante no quesito de gerar uma identificação entre o leitor e o herói: os sentimentos e sensações do personagem são importantes, mas precisam aparecer numa óptica narrativa que se aproxima das crônicas, ou seja, das narrativas informais que veem o mundo como palco de ações e repercussões vinculadas ao sujeito e dotadas de pessoalidade. Se voltamos ao “Para o homem que tem tudo”, percebemos como o Alan Moore “chuta o pau da barraca” ao dizer nas entrelinhas que o Super gostaria de ser apenas um cara comum, que pudesse viver a própria vida sem ter que voar “para o alto e avante” e salvar o precioso couro alheio. Esse tipo de visão é que acaba aproximando o leitor do personagem, essa “quase crônica” que apresenta o outro lado do superpoder.
Bom, falar sobre inovações do Alan Moore não é tão difícil assim, quando se pensa no currículo do cara... O lance é pensar em outros autores trabalhando sobre o Superman, como, p.ex., o Sholly Fisch.
Esse sujeito escreveu duas histórias que são, simplesmente, geniais: em Action Comics n.5, em uma história de 7 páginas, ele mostra o lado humano da família Kent, focando na impossibilidade de ter filhos naturais de Jonathan e Martha, de várias alternativas buscadas e de como o caráter deles pesa em cada escolha a se fazer. O legal é que o Super nem aparece na história, mas se pode perceber, no final, que o cara só é o Clark Kent devido à educação que recebeu dos pais. Já em Action Comics n.6, o Sr. Fisch apresenta Clark se desfazendo da fazenda de seus pais, visto que ele se muda para Metropolis e não há mais quem cuide do rancho. História genial: 7 ou 8 páginas que mostram como a memória e o espaço são elementos que, devidamente trabalhados, rendem enredos muito bons numa HQ: a chave desta história parece girar sob a perspectiva da mudança, mas não da espacial (sair de Smallville e morar em Metropolis), e sim da interior, com um personagem deixando a margem da infância/adolescência e rumando para a vida adulta. E são essas coisas, que nós humanos passamos e ficamos emocionados ao ver retratadas, ou metaforizadas, em comics que fazem a jornada do herói ser, sim, uma construção contínua do nosso próprio eu, da forma como nós, leitores, conseguimos ver cada vez mais em profundidade personagens e enredos que, no fim das contas, são nossos reflexos, sinceros em suas subjetividades, e capazes de nos fazer refletir sobre quem, afinal, somos.
Ora, heróis também precisam levar o lixo para fora ou desentupir a pia e nós, pacatos leitores, também salvamos o planeta Terra cada vez que nos levantamos pela manhã e encaramos mais um novo dia.
Dangelo Müller
Ms.Letras e cultura Regional