Por estes dias, andei relendo o Mort Cinder, do Oesterheld e Breccia, numa edição que ganhei de um amigo. A revista era uma espécie de “brinde” do jornal Clarín, numa série que eles chamaram de “biblioteca Clarín de la historieta”. Pode-se dizer que se tratavam de “historietas” de respeito, reunindo obras emblemáticas como o Batman, do Bob Kane; a Mafalda, do Quino; e Mandrake, do Lee Falk. Mort Cinder, personagem pouco conhecida no Brasil, faz parte da leva argentina que trouxe questionamentos mais adultos aos quadrinhos, algo que podemos ver exemplarmente em Eternauta, também de Oesterheld.
Mort Cinder parte de uma premissa muito simples, mas genial: Cinder é um homem eterno, com uma origem muito antiga, atravessando diversos momentos históricos da humanidade. Só para se ter ideia, Mort Cinder ajudou a construir a Torre de Babel e lutou nas Termópilas... Bom, até aí, não há nenhuma grande invenção, mas Oesterheld se supera ao tratar Cinder como eterno, mas não imortal, ou seja, a personagem vive, luta, ama e, eventualmente, morre – ressuscitando, de forma inexplicável, para dar continuidade a sua sina eterna. O nome da personagem encerra seu destino e “Cinder” acaba fomentando a metáfora de um homem-fênix, que renasce mantendo a memória de suas vivências prévias. O autor usa um “gatilho narrativo” perfeito: um dos únicos (se não o único) amigo de Mort é o dono de um antiquário, cujos objetos inusitados disparam as memórias de suas vivências pregressas.
Acho que o grande mérito que, particularmente, vejo em Mort Cinder é a transformação do lugar de memória em uma forma mítica, algo que supera as marcas de temporalidade e assume um lugar “fora e acima do tempo”, como diria Lévi-Strauss. Parece que a narrativa de Oesterheld e Breccia surge como algo capaz de evocar e, paralelamente, atualizar a própria narrativa do tempo e, talvez, sob esse ponto de vista, a mensagem que Cinder me passe seja aquela de que vivemos para lembrar e, paradoxalmente, lembramos para viver.
Assim, Cinder é o viajante do tempo sob uma nova perspectiva, um ser capaz de se vincular aos meandros do tempo sem saltar, acelerar ou obliterar sua passagem, algo que, contemporaneamente, é mais próximo aos postulados de Stephen Hawkins e mais distante das imaginações de H.G. Wells. As viagens de Mort Cinder são exercícios de memória e expectativas de futuro, algo que, me parece, fazemos inerentemente, bem diferente de sentar-se em um engenho capaz de atravessar tessituras espaço-temporais e ancorar em portos do futuro. Esse homem-fênix encarna a viagem temporal vista sob um ponto intimista.
Esta questão, a da viagem temporal, me parece bem presente quando passo em frente a um sebo: todas aquelas revistas, livros, gibis e cds, que pontuaram algum momento no presente e, fatalmente, foram lançadas nas linhas do passado, parecem reclamar uma “atualização”, ou “momentos de presentificação” – mas que expressão horrorosa, hehehe – , momentos que restaurem a centralidade daqueles objetos culturais, a aura e imaginário presente naquelas reportagens, histórias ou músicas. Como não sorrir ao encontrar uma velha revista Bizz anunciando a “nova sensação” da música, uma banda chamada U2, ou, então, descobrir em meio à poeira uma edição de Prometeu e Epimeteu, do Carl Spitteler? Sim, o sebo tornou-se uma espécie de máquina do tempo, capaz de dar o contato imediato com aquelas realidades de outrora. Uma espécie de antiquário do Mort Cinder.
Claro, o sebo pode funcionar como uma espécie de viagem temporal, mas há o perigo clássico de se configurar uma viagem para lugar nenhum. “Como assim, meu caro? Estás te contradizendo?” tu poderás pensar, dileto leitor, mas, deixe-me explicar. Existem sebos E sebos e, devo reconhecer, os mais acessíveis em nossa cidade são meros arremedos daqueles que podemos encontrar em Porto Alegre, Curitiba ou, quiçá, Rio de Janeiro. Em Caxias, o Sebo é só uma loja que vende livros e revistas velhas, incapaz de dialogar com a sensibilidade do leitor. O episódio que me vem à mente é emblemático: um rapaz vendia um exemplar de “Cinquenta tons de cinza” ao sebo numa pacata terça-feira.
Só de curiosidade, alonguei minhas orelhas e esperei para ver o veredito da atendente, uma menina que manuseou as obras com olhos de lince, procurando manchas, rasuras e rabiscos. Após uns 20 segundos ouvi a sentença “Hum, R$ 8,00”. Dias depois, a mesma atendente avaliou, após seus vinte segundos de reflexão espiritual, “o livro de areia”, de Jorge Luis Borges, em R$ 3,00 e justificou: “É que infanto-juvenil não está saindo muito”. Sim, sim, a realidade é algo bastante estravagante...
Não se pode ser intolerante ao ponto de esbravejar contra uma adolescente que, provavelmente estivesse cumprindo ordens ou apenas esperando as horas fatídicas de fechar as portas, que provavelmente nunca foi apresentada ao ilustre señor Jorge Luis Borges, ou então que não tenha a leitura como um de seus entretenimentos. Isso é algo que as páginas de Oesterheld me apresentam em Mort Cinder, a visão de que, independente da época, o ser humano tem vocações à estupidez. Desde o dia que o sebo ** *** decretou a pecha infanto-juvenil do Livro de Areia, acho menos perigoso frequentar os sebos virtuais, que compensam a distância através do bom atendimento. E que não colocam Borges na literatura “brasileira infanto-juvenil”...
Dangelo Müller
Ms.Letras e cultura Regional