Por esses dias, andei pensando no Ítalo Calvino, mais precisamente em umas linhas que ele escreveu no início de Por que ler os clássicos, nas quais ele menciona a importância da releitura. Aproveitando as férias, resolvi seguir o conselho do Seu Calvino e ler novamente algumas coisas do Hermann Hesse e do Joseph Conrad – alguns contos para aquecer meu ímpio coração. Quando fechei o Coração das trevas e, num assomo de organização doméstica, o repus na prateleira, eis que surge, sorrateiro e perverso, um gibi em meio aos meus alfarrábios! “Por São Cosme!”, pensei atônito, “o que este subversivo folhetim ilustrado faz em meio aos meus amados clássicos?!” Na ausência de uma resposta cósmica, resolvi reler o pernicioso material.
Tratava-se de uma revista em formato grande, uma Graphic Novel da linha Marvel, da editora Abril, publicada em meados de 1991 aqui no Brasil. A capa trazia estampada em letras garrafais Triunfo e Tormento, e uma ilustração assaz intrigante: no primeiro plano, vemos o Doutor Estranho, o “mago supremo” e defensor das demais boas artes místicas, logo atrás dele surge o famigerado Doutor Destino, personagem maquiavélica e de suma-vilania nos quadrinhos, e, no plano de fundo, dando o tom de fogo e enxofre ao quadro, impõe-se Mefisto, o regente do inferno na mitologia Marvel. Bom, além desse trio inusitado à la O bom, o mau e o feio, de Sergio Leone, o que chama a atenção é a pose do Dr. Destino: braços abertos, cabeça inclinada e expressão de abandono, configurando uma autêntica crucificação em espinhos demoníacos. Há um quarto elemento, deveras significativo, nessa capa endiabrada: entre Destino e o tinhoso Mefisto, interpõe-se a estátua de uma jovem cigana – que, no decorrer da história, descobrimos tratar-se da mãe de Victor Von Doom, o popular Dr. Destino.
O enredo de Roger Stern, desenvolvido ao longo de 84 páginas, acompanhado pela narrativa visual de Michael Mignola, nos mostra a jornada ao inferno dos Doutores em busca da alma da mãe de Von Doom, a qual se tornara pactuária a fim de salvar sua tribo cigana da perseguição dos potentados locais. Stephen Strange, o bom moço, é obrigado a rever sua vida pregressa nas províncias infernais e sofre com o peso de seus pecados, enquanto Von Doom, maligno e pragmático, o entrega a Mefisto para receber em troca a alma de sua mãe. Após algumas reviravoltas e discursos inflamados de ambos os lados, a verdade se revela: Cynthia, percebendo a vilania do filho, renega a barganha e abandona Von Doom. E aí se fecham as amarras da trama: ao se revoltar e não compactuar com a traição do filho, a cigana ganha a absolvição divina e, por mérito próprio, ascende aos céus. Tudo fora um plano do ardiloso Destino para que a amada matriarca fosse ouvir Stairway to heaven em companhia angelical – mesmo que o preço tivesse que ser tão caro, ou seja, o sacrifício do amor filial. A pose de sacrifício da capa agora faz muito sentido. De volta ao mundo terreno, Destino e Estranho trocam conjecturas sobre como o diabo fora enganado e a HQ se encerra com uma citação de Stanley Kunitz: “Eu me encontro no terrível portal e vejo o fim e o começo, um nos braços do outro.”
Muitas vezes, em conversas com amigos e acadêmicos, me deparei com a opinião de que quadrinhos eram um “subproduto cultural mercantilista”, que lhes faltaria algo essencial à arte literária e etc. E, verdade seja dita, há algo de real nesse modo de ver as HQs. Muitas não passam de propaganda de mercado ou de difusoras de ideologias colonialistas. Ora, ora, quem não gostaria da ajuda do cara que voa e dispara raios para resolver os problemas do mundo? Porém, e infelizmente esse é um “porém” cada vez mais reduzido, existem as histórias em quadrinhos que superam as bordas de um subproduto e se tornam arte. De forma um pouco arrogante, eu coloco Triunfo e Tormento nesse patamar e a considero detentora de atenções literárias. Sim, meus caros, os quadrinhos possuem elementos literários.
“Literatura” em si é um conceito complexo e mutante, que tende a ser constantemente revisto e reformulado enquanto tratar-se de uma arte viva. Os doutos da área, como Massaud Moisés ou Afrânio Coutinho, nos ensinam que o conceito originou-se do termo latino littera, que era a arte de escrever as primeiras letras, algo como nossa alfabetização contemporânea. Com o passar dos séculos, o termo foi vinculado à produção escrita dos saberes de uma determinada área, e aí se instaurou uma fanfarronice que alguns ainda insistem em empregar, usando termos como “literatura médica” ou “literatura química”. Do final do século XIX em diante, o conceito passou por uma problematização acadêmica um tanto mais digna e um recorte mais delicado de seu objeto, delineando o estudo das propriedades artísticas e ficcionais do texto como foco central. Percebeu-se que a obra literária é capaz de ser “simultaneamente individual e geral”, na palavras de René Wellek.
No contexto das HQs, a literariedade, sob meu ponto de vista, surge quando os diálogos entre argumento e arte se entrelaçam e geram um todo mais profundo e denso, capaz de magnetizar o leitor. Ao retomar Triunfo e Tormento, percebo o jogo que os autores promovem entre o enredo fáustico e a cultura massmedia das comics: dois personagens pops viajam ao inferno para salvar a donzela que vendera sua alma. Isso não é algo necessariamente novo, afinal, trata-se de uma releitura do mito de Orfeu resgatando Eurídice e de Fausto com sua Gretchen (ou Margarida) às avessas. A graphic novel começa a ganhar status de arte quando percebemos o quão santo o vilão deve se tornar para, pecaminosamente, salvar a mãe da danação eterna. O que Doom[1], cujo próprio nome já é emblemático, almeja? Tornar-se o redentor por meio do estratagema maquiavélico? Vencer o diabo em seu próprio jogo?
Seja por intermédio de narrador, tempo, espaço, personagens, enredo ou outro elemento presente na narrativa, a verdadeira literariedade manifesta-se nessa obra, assim como em outras, quando a visão singular do universo ficcional ali presente é capaz de conversar com a percepção coletiva de seus leitores, retomando o sistema triangular que Antonio Candido salientava como essencial à literatura: autor, obra e público-leitor. Assim, não é exagero dizer que os quadrinhos, bem como a literatura, vinculam-se ao viés sociocultural, utilizando esse como um amplo background. Além disso, os elementos narrativos do texto literário e dos quadrinhos miram, em comum, o desenvolvimento de um universo ficcional e imaginativo capaz de transbordar índices textuais isolados, gerando um produto cultural mais profícuo que a mera soma de seus elementos. Sob tais aspectos, a literatura convencional e as HQs possuem um diálogo bastante afinado.
E por isso, nestes breves, porém um tanto prolixos escritos, usei a questão de Triunfo e Tormento como mote: o título dessa graphic novel me parece um bom indicador para a situação dos quadrinhos nos veios literários. Há, certamente, os triunfos da arte como V for Vendetta, Dream Hunters e O cavaleiro das trevas, como também encontramos os “tormentos” da arte, como tantos super-heróis e super-times (que são os mesmos, apenas com detalhes diferentes nos uniformes...).
Bom, caro leitor, tu já estás com os olhos cansados a esta altura e quiçá a paciência também. O que, em resumo, tento apresentar com este mísero texto é que deveríamos pensar um pouco mais antes de rotularmos os quadrinhos como leitura menor, ou de colocarmos no mesmo “saco de gatos” uma obra como Sandman e uma série como Young Blood.
Dangelo Müller
[1] Doom: Destino, perdição.