Era Iron Maiden, não restava dúvida: a voz de Bruce Dickinson evocando o “number of the beast” atraía os ouvidos, e olhos, daqueles que desciam do ônibus e passavam em frente à Discomania. Eram os anos 80 e Caxias do Sul ainda achava uma capa de disco com um zumbi e um demônio uma coisa apavorante. Por via das dúvidas, era bom nem olhar muito e, quiçá, persignar-se.
A loja de discos era parte do trajeto até a famigerada antessala do consultório médico do Dr. Santos, uma jornada que minha mãe e eu percorríamos mensalmente. Nariz, ouvido e garganta eram detalhados em cartazes coloridos, sempre próximos aos austeros “Malefícios do Cigarro” ou “Diga Não às Drogas”. Mesmo com toda boa vontade do Dr. Santos, aquele não era um ambiente estimulante a um garoto de nove anos: em quinze minutos, podíamos ler, reler e, audaciosamente, opinar sobre a “marcha do Brasil contra as drogas”. A salvação da lavoura era a mesa de canto, municiada de várias revistas da editora Abril. Entre “Veja” e similares, algumas vezes surgia um “Heróis daTV” ou “Espetacular Homem-Aranha” em edições mais antigas, um pouco surradas, mas irresistíveis em sua proposta: entreter.
Em uma dessas idas ao médico encontrei uma pérola: um gibi do Aranha enfrentando Kraven, o caçador, auxiliado por sua concubina Calixto, uma feiticeira africana. Diabos, eu nem sabia o que era uma “concubina”, e ainda apanhava na leitura das caixas de texto com onomatopeias com “w” e “th”, mas era o Homem-Aranha! Não tinha como “não ser algo legal”! Narrativa veloz, cores marcantes, a arte de John Romita, lutas em telhados e nas ruas de uma Nova York noturna eram elementos magnéticos para uma imaginação até então fadada aos dizeres do “Diga Não às Drogas” e “Malefícios do Cigarro”.
Hoje, quase trinta anos depois, percebo que aquela foi minha iniciação ao mundo da leitura. O espaço daquela NY umbrosa dos anos oitenta se fundiu ao desolado de um Liso do Sussuarão, de Guimarães Rosa, ou da Dublin, de Joyce, ou mesmo de Ítaca, de Homero, isto é, como pensar na construção de uma obra, seja livro ou quadrinhos, sem o elemento do cenário e, em decorrência direta, suas relações com os personagens ali vistos? Será que o Super-Homem seria o mesmo fora de Metrópolis, ou Batman, então, longe de Gotham? As luzes de Metrópolis, a claridade de um céu azul e limpo são reflexos, me parece, da personalidade de um deus solar, como Kal-El. A Gotham City gótica, sombria, neurótica é, sob um ponto de vista identitário, um eco da psiquê de Bruce Wayne: Batman é um deus sombrio e punidor, um avatar de Hades, ou de Garm. Claro, um menino de nove anos não pensa nessas coisas, mas os pontos de referência ficam lá, os “lugares de memória”, segundo M. Halbwachs, ou as sementes de um imaginário, para o Gilbert Durand.
Assim, como pensar no Aranha sem a frenética NY dos quadrinhos Marvel? Ou, finalizando, como pensar na Caxias do anos 80 sem a loja de discos inundando as ruas? Afinal, tudo é vivência e tudo vira memória – seja mito, música ou quadrinhos.
Dangelo Müller