Na imagem acima, você vê um print do mapa de contaminação encartado no site da Johns Hopkins University. Nela, os EUA aparece literalmente sendo engolido pelo vírus, de costa a costa. Lá, eles estão empilhando corpos em caminhões frigoríficos. Todo mundo sabe que os EUA é o país fetiche de muita gente no Brasil, mas os americanos apostam na morte em favor da bolsa e dos investidores.
Sabe pessoal, eu realmente não espero que o bom senso, a empatia e a responsabilidade social venham de Wall Street, da Bovespa, da Fiesp e dos CDLs da vida. O papel dessas entidades é olhar apenas para os lucros, para as empresas, os seus associados e seus grupos de interesse. Números, o que vale são principalmente os números. Eu compreendo perfeitamente que quem vive numa realidade de privilégios entenda a si mesmo como a matéria mais importante para a existência de tudo que respira ao seu redor.
Hoje bem cedo pela manhã, eu vi um ponto de vista muito interessante em um documentário da Deutsche Welle. Nesse vídeo, através de entrevistas e análises de estudiosos do assunto, os produtores chegaram a um consenso. Ficou claro que, para quem tem poder e muita grana, mas muita mesmo, eles entendem como justa a sociedade que temos. Uma sociedade com essa disparidade é um dado com o qual eles têm que conviver, pois para eles a miséria é um efeito colateral. Afinal, no entender dos donos do poder e da grana, esse problema não é algo promovido pelas instituições e corporações. Seria fundamentalmente uma falha de caráter, seria preguiça, sempre teria algo a ver com etnia, com falta de educação, com precária estrutura familiar e ausência de fortes conceitos morais e éticos. Portanto, essa é a base do conceito de mérito deles.
Então, ao saber disso, eu fiquei envergonhado da minha falta de perseverança e fibra. Puxa vida, que carinha sem noção que sou. Eles me ajudaram a perceber que a minha pobreza é única e exclusivamente culpa minha, não é mesmo? Somos irrelevantes perante a economia, ela é mais importante. Pois ao abrir hoje os jornais no meu browser, pipocaram manifestações de indignação dos setores produtivos contra as decisões do governador tomadas ontem, dia 15 de abril. Entretanto, dessa vez o governo está se comportando de maneira sensata. Depois de um intervalo em que coletou nossos impostos, década após década, logo chegou a hora de retribuir o pagamento de cada brasileiro. Vamos ponderar, entre tantos salvamentos que os governos já ofereceram aos lucros especulativos dos bancos, vale acionar uma medida de proteção ao cidadão fragilizado por uma pandemia como essa que nos assola. Estes que o governo tenta proteger com o distanciamento social ― as pessoas como o frentista, o entregador de pizza, o atendente de padaria, o operário da fábrica, o professor, o pedreiro, o costureiro, o reciclador e outros ― são também legítimos produtores de riqueza, são a mão de obra, a força do trabalho, as peças da engrenagem sem a qual não há produção. Nas manchetes, os poucos representados dos setores ditos produtivos expressam a sua indignação pela manutenção do distanciamento social, alegando que a medida lhes causa prejuízo financeiro. Quando o bem-estar dessa mão de obra entra em jogo, ela se torna um problema para o setor produtivo. Por consequência, quando os governos fazem aquilo que acho certo para preservar a saúde dessa força de trabalho produtiva, incluindo a minha própria, supondo que tenhamos alguma importância nessa sociedade, percebo que me engano.
Isto posto, proponho um exercício de imaginação e empatia. Ao ler as manchetes, podemos interpretá-las pela ótica de quem está desesperado com a possibilidade de que a sua riqueza e privilégios sejam mortalmente afetados. Se pudessem romper o código moral e livrarem-se do pudor, eles mudariam as manchetes dos jornais drasticamente para atender àquilo que julgam urgente, salvar a sua economia. Nos coloquemos no lugar deles. Nos jornais de hoje eles choram, esperneiam, clamam por ajuda, tudo isso disfarçado do melhor interesse público, do interesse das famílias e do estado. Se as manchetes realmente correspondessem às expectativas mais íntimas dos especuladores, financistas, rentistas, compulsivos acumuladores de grana sem lastro, elas seriam mais ou menos assim:
“O CDL faz um emocionado e direto apelo aos comerciários: Por favor, morram pelas minhas lojas!”;
“A Fiesp lança campanha de conscientização: Esqueça o seu bem-estar, sua vida não tem valor pra mim, morra feliz pelas minhas fábricas!”;
“A CIC tem uma mensagem especial para você neste tempo de crise: A tua família não é importante, a minha prole sim, eles têm futuro!”;
“A Bovespa faz um alerta sobre a economia: Você não tem nada, o que custa morrer pelos meus investimentos?”;
“A confederação da indústria pondera: Eu sei que você inveja a minha riqueza, fiquem tranquilos, nós permitimos que vocês sonhem com ela, mas por favor venham trabalhar na segunda!”
No fim, sabe o que é pior? Essas ideias conseguem eco na população. Nós aceitamos ser coadjuvantes, nós permitimos e damos espaço para que sejamos tratados como um recurso descartável. Nos últimos dias, tenho me deparado com opiniões que reforçam essa insânia, essa alienação, vindas de gente que compra para o si o discurso da camada de cima, que se ilude com a promessa de algum dia, com muito trabalho e esforço, estar na mesma posição privilegiada. É triste, mesmo depois de tanto tempo, ainda não superamos a lógica social do senhor e do escravo. Se esse é o nosso jeito de mobilidade social, estamos condenados.