Ao longo da vida ouvi e li várias versões sobre o relacionamento entre os músicos. Esta é apenas uma delas
“Todo músico me parece meio surdo”, disse J.C. Piva, dentista, boêmio e frequentador de botecos em Porto Alegre. Para ele, era um problema clínico relacionado à perda de frequências auditivas, graves, médias e agudas. "Quem fala alto escuta baixo", chutava sem mencionar o torturante e sonoro motorzinho do seu consultório.
“Nada disso, meu caro tiradentes", como também era chamado o odontólogo, além de Pivinha nos balcões da labuta. "O buraco é mais embaixo”, contestou M. P. Almeida, educadora e apreciadora de drinques encorpados.
A garçonete limpou o balcão de madeira escura com um pano branco empapado de álcool e regalou duas tigelas de amendoim torrado.
“Sim, todo instrumentista é meio ou totalmente surdo. Sei muito bem, já fiquei com uns pares, inclusive saxofonistas”, garantiu a maestra, logo depois de ajeitar o generoso decote expondo os seios sufocados por um sutiã clamando por liberdade.
“Como assim”, perguntou, com uma das mãos em concha no ouvido, o mono pianista M.S. Neto, um diarista de balcão.
A moça do ensino bebericou seu Dry Martini à moda Marylin Monroe, sem vermute e azeitona, cruzou as pernas num remake de Sharon Stone no filme Instinto Selvagem e aquarelou aos vitimados ouriculares.
“Vocês, os músicos, passam noites e dias em meio ao barulho e farras. Ensaiam, passam e repassam os arranjos, tocam e retocam partes ou o todo da música. Tudo bem alto, com aquelas enormes caixas de som bem junto das orelhas. Nos shows, é pior. Cada um quer ver o seu instrumento gritar mais alto no palco”, sustentou a sedutora professora no diagnóstico da surdez no ofício dos músicos.
No sistema sonoro, a trilha do Flu#Fornazzi inebriava o ambiente. Duas tvs analógicas projetavam imagens mundanas garimpadas pelos atores Falcão e Marcolino Sete Belezas.
"Pelo visto, a garota que domina a arte do bêaba conhece muito bem as moléstias do mundo musical", obturou Pivinha e pediu mais uma dose.
“Ô tiradentes, falo isso porque meu avô era músico e foi ficando surdo. Da turma do Lupicínio Rodrigues, ele vivia de bar em bar, de palco em palco”, cantarolou em tom de melancolia.
De repente, em voz professoral, afinada, persuasiva e sem broncas, sonidos típicos de uma pessoa de bem com a vida, o baixista H.H.Hart, acrescentou outros elementos à etílica e musical conversa.
“A surdez até pode ser verdade, mas os músicos não estão preocupados com isso. Se ocupam com outros problemas”, acordeou o fraseado e pediu uma medida da Amarga, uma aguardente uruguaia. "A preferida de Carlos Gardel e do matemático Ivan Pan", bandeneou o baixista.
"Que problemas teriam estes artistas das partituras", questionou o homem do boticão volume privado.
"Pinduras. Pensões atrasadas. Dor na junta, catarata, gastrite. Sem shows. Sem cachê. Sem música nova. A gente sabe por causa das conversas que se escuta entre um amendoim torrado e uma cerveja barata", temperou a garçonete enquanto engordava as comandas.
Sem mais devaneios, H.H.Hart deu um tapa no Cut Sack e foi direto ao assunto. “O pianista pensa que é um maestro. O guitarrista acredita que conhece harmonia. O baixista julga que sabe improvisar e o baterista acha que domina tudo na música”, sentenciou.
“E o percussionista”, indagou o mono pianista.
“Confia que o cara das baquetas é seu amigo e também na Bíblia”, desdenhou o instrumentista das quatro cordas.
A coadjuvante garçonete recolheu o pano, copos e tigelas, abriu uma garrafa de vinho tinto e alfinetou: "E o cantor"?
"Ah, esse aí se projeta como o dono da banda", fuzilou o cara dos ritmos e das notas graves.
Assim dito, Pivinha se botou de pé. Em posição solene, elevou um copo de cachaça mineira e anestesiou a conversa.
“Quanta sabedoria. Uma pena que não seja um otorrinolaringologista. Pacientes não faltariam. Em homenagem ao Beethoven, eu pago a próxima rodada”.
Risos, abraços e todos seguiram bebendo e falando alto pra caramba!